Por Rosana Pinheiro Machado
Era a largada de
duas escolas que estavam situadas uma do lado da outra, separadas por um muro
altíssimo de uma delas. Da escola pública saíam crianças correndo, brincando e
falando alto. A maioria estava desacompanhada e dirigia-se ao ponto de ônibus
da grande avenida, que terminaria nas periferias. Era uma massa escura,
especialmente quando contrastada com a massa mais clara que saia da escola
particular do lado: crianças brancas, de mãos dadas com os pais, babás ou
seguranças, caminhando duramente em direção à fila de caminhonetes. Lado a
lado, os dois grupos não se misturavam. Cada um sabia exatamente seu lugar.
Desde muito pequenas, aquelas crianças tinham literalmente incorporado a
segregação à brasileira, que se caracteriza pela mistura única entre o sistema
de apartheid racial e o de castas de classes. Os corpos domesticados revelavam
o triste processo de socialização ao desprezo, que tende a só piorar na vida
adulta.
Mas eis que, de repente, um menino negro,
magro e sorridente, ousou subverter as regras tácitas. Brincando de correr em
ziguezague, ele “invadiu” a área branca e se esbarrou num menino que,
imediatamente, se agarrou desesperadamente no braço da mulher que lhe buscara.
Foi um reflexo automático do medo. O menino “invasor” fez um gesto de desculpas
– algo como “foi mal” -, e voltou a correr entre os seus, enquanto que a outra
criança seguia petrificada.
No olhar do menino
“invadido”, havia um misto de medo, de raiva, mas principalmente, de nojo –
como que se a outra criança tivesse uma doença altamente contagiosa. Não é
difícil imaginar o impacto de esse olhar no inconsciente do menino negro e
pobre. Este aprendia, desde muito cedo, que era um intocável, que vivia em uma
sociedade na qual seu corpo, na esfera pública, valia menos que o de um menino
da mesma idade, que ainda não tinha nenhum mérito conquistado, apenas
privilégios herdados. As consequências desse gesto minúsculo serão trágicas
para o menino "invadido", pois é vítima da ignorância social. Mas
será muito mais trágica para quem é negro e desprovido de capital econômico,
social e cultural. Para que essa que criança não se corrompa no futuro, ela
precisa ser salva do olhar de nojo.
É possível que, por
meio de leitura e mistura, o menino amedrontado se engrandeça politicamente no
futuro, se liberte do muro que lhe protege e dispense o braço da babá. Mas,
infelizmente, há uma tendência grande de que ele, cercado por medo e
preconceito, passe o resto de sua existência se protegendo do “marginalzinho”.
Pivetes, favelados, fedorentos: isso é tudo que o ele ouve sobre seus vizinhos.
Trata-se de uma verdade histórica a priori, para além da qual não se consegue
pensar. Essas categorias compõem o discurso forjado sobre a pobreza, que, em
última instância, visa à intervenção e à manutenção do poder.
Reproduzindo este
discurso, então, o menino tornar-se-á um adulto. Ele blindará seu carro,
colocará alarme em sua casa, pedirá a morte de traficantes. Dirá que rolezinho
é arrastão, pedirá mais polícia e curtirá a vida em camarotes. Pode ser até que
ele peça a volta da ditadura. Achando que é um cidadão de bem que age contra a
marginalidade do mal, forma-se um perfeito idiota.