Na porta do
endereço da Avenida São João, número 1.600, bem no centro de São Paulo, a
transexual Vitória tentava entender um aviso fixado em uma porta de vidro.
Analfabeta, pediu ajuda para ler que “no próximo domingo não haverá
distribuição de cestas básicas”.
O anúncio estava colado na porta da igreja evangélica Cidade de Refúgio, um lugar onde
transexuais, como Vitória, além de gays e lésbicas são bem recebidos.
Inaugurado em 2011, o templo é comandado pelo casal de pastoras Lanna Holder e
Rosania Rocha, 40 e 41 anos, respectivamente.
Em junho deste ano, a Cidade de Refúgio completará quatro anos, quando deve
inaugurar um novo templo, com capacidade para até 2.000 pessoas, no endereço ao
lado. Isso ocorre em um momento em que pautas
como o Estatuto da Família –
que, entre outras coisas, define como núcleo familiar apenas a união entre
homem e mulher, excluindo a união homoafetiva, aprovada em 2011 pelo Supremo
Tribunal Federal -
volta e meia entram em votação na Câmara dos Deputados, cada vez mais
conservadora. Assim como outros projetos de lei como a cura
gay – que altera
resoluções do Conselho Federal de Psicologia que proíbem que profissionais
participem de terapias para alterar a identidade sexual do paciente.
Era justamente a "cura gay" que
Lanna Holder pregava quando conheceu Rosania, em 2002. Na época, ambas tinham
marido e filhos. Rosania era casada com um pastor e cantava nos cultos de
igrejas evangélicas brasileiras nos Estados Unidos. Evangélica desde os 19
anos, Lanna era missionária da Assembleia de Deus, uma das maiores entre as
pentecostais, com milhares de membros. “Eu tinha alcançado um ápice ministerial
por conta do meu testemunho”, conta Lanna. “Eu falava sobre a minha mudança de
orientação sexual. Eu era uma ex-lésbica”. Ela passou seis anos viajando pelo
Brasil e pelo mundo pregando sua cura.
Em uma das viagens aos Estados Unidos, Lanna e
Rosania se conheceram. Demorou quase um ano para que elas percebessem que havia
uma atração entre elas, maior do que a amizade. “Um dia, liguei para ela para
dizer que eu amava ela”, conta Lanna. Um mês depois, Lanna foi para os Estados
Unidos, para pregar, e ficou na casa de Rosania. “Quando ela foi me buscar no
aeroporto e eu a vi, pensei: Jesus, tenha misericórdia”, conta Lanna, rindo. A
situação foi difícil para elas. Quando perceberam que estavam apaixonadas,
relutaram com os recursos que conheciam. “Oramos muito, chorávamos,
jejuávamos”, diz Rosania. O jejum era uma forma de troca. “Pensávamos: Olha
Jesus, eu vou jejuar e você tira isso de mim”.
Mas o sentimento que tinham uma pela outra não
tinha mais volta. “E percebemos que estávamos perdendo a nossa legalidade
diante de Deus”, diz Lanna. Procuraram os respectivos maridos e contaram a
história para eles. Na sequência, procuraram pelo pastor da igreja nos EUA para
pedir ajuda. E para que a história não viesse à tona. Na verdade, queriam ser curadas:
“Na época, tudo o que você pode imaginar que a igreja dizia que nos curaria,
nós tentamos. Desligamento de alma, cura interior, fizemos tudo”, diz Lanna. No
dia seguinte à procura pelo pastor, a comunidade evangélica no Brasil e nos
Estados Unidos estava sabendo da relação das duas. “Perdemos contratos para os
shows da Rosania e para a minha pregação”, conta Lanna. “Eu não tinha nem como
entrar na igreja. As pessoas mudavam de calçada, me hostilizavam no supermercado”,
diz Rosania. Ela foi expulsa de casa e voltou a trabalhar, fazendo faxina nos
Estados Unidos. E parou de cantar.
Desligadas, Lanna acabou indo morar nos
Estados Unidos também. “Entreguei pizza, trabalhei na construção civil, fiz
tudo para sobreviver ali”, conta. Mas sofreu um acidente e ficou em coma por
três dias. E foi isso que as uniu novamente. Um pastor “muito conhecido aqui no
Brasil” as orientou. “Ele dizia: Deus quer que vocês sejam felizes. O que está
errado é o fato de que vocês estão casadas. E não de estarem apaixonadas”. Elas
não revelam a identidade do pastor.
Fonte: El Pais
Fonte: El Pais
