Nem todo comportamento recomendável na vida privada pode ser transposto sem graves conseqüências para a vida pública.
Certos comportamentos totalmente recomendáveis e elogiosos na vida privada, se transpostos para a vida pública, revelam-se catastróficos. E comportamentos censuráveis nas relações privadas, mostram-se necessários e até indispensáveis na vida pública. Esta contradição entre virtudes e defeitos na vida privada e na vida pública foi analisada com excepcional objetividade e crueza por Maquiavel.
Existe uma contradição entre virtudes e defeitos na vida privada e na vida pública.
Em "O Príncipe", ele demonstra como uma virtude da vida privada - a liberalidade, por exemplo -, se adotada pelo governante, transforma-se no seu oposto na vida política.
O governante liberal, no seu desejo de agradar a todos, gasta mais do que poderia, tendo que depois aumentar impostos e coletá-los avidamente para cobrir o déficit. Já o governante "mão fechada" gera poucas expectativas, de forma que aquilo que fizer para o povo será sempre recebido como uma agradável surpresa, e gastando pouco não precisará aumentar os impostos.
Em resumo, a sovinice, um defeito na vida privada, torna-se uma virtude na vida pública, enquanto que a liberalidade, uma virtude na vida privada, transforma o governante num antipático e autoritário arrecadador.
Um ataque à honra pessoal do político é devastador, podendo liquidar com uma carreira.
É ela que obriga o político a viver duas vidas: com os eleitores cultivando os valores e virtudes da vida privada, por meio dos quais é visto como um deles, e conquista a sua confiança; com os outros políticos e governantes praticando a "lógica do poder", sem a qual não sobrevive na selva política.
Esta é uma "brecha" perceptiva que não se elimina. Seria preciso que os eleitores adquirissem um conhecimento e experiência da vida política que somente é acessível a quem abraçou esta carreira.
A "nobre arte da política" transforma-se então num setor de atividades onde reina a ambigüidade, estando sempre a um passo da censura pública. Reconhecer esta diferença não significa, porém, admitir comportamentos desonestos. Significa apenas reconhecer que a esfera pública possui uma lógica própria, diferente da vida privada.
Não é preciso ser desonesto para ter sucesso político. Ao contrário, este é um caminho que conduz ao desastre político e pessoal. Por outro lado, um político que queira se comportar na esfera política como se comporta na vida privada, também muito dificilmente logrará sucesso.
Por Francisco Ferraz